20070429


Paul Klee, Highway and Byways

20070428

A apreciação do silêncio é uma das numerosas coisas que um leitor, sem que se espere, pode aprender de sua obra. Você tem escrito sobre a liberdade que o silêncio permite, sobre suas múltiplas causas e significações. Em seu último livro, por exemplo, você diz que não existe apenas um, mas numerosos silêncios. Seria fundamentado pensar que há ai um potente elemento autobiográfico? - "Penso que qualquer criança que tenha sido educada em um meio católico justamente antes ou durante a Segunda Guerra Mundial pôde experimentar que existem numerosas maneiras diferentes de falar e também numerosas formas de silêncio. Certos silêncios podem implicar uma hostilidade virulenta; outros, por outro lado, são indicativos de uma amizade profunda, de uma admiração emocionada, de um amor. Eu lembro muito bem que quando eu encontrei o cineasta Daniel Schmid, vindo me visitar, não sei mais com que propósito, ele e eu descobrimos, ao fim de alguns minutos, que nós não tínhamos verdadeiramente nada a nos dizer. Desta forma, ficamos juntos desde as três horas da tarde até meia noite. Bebemos, fumamos haxixe, jantamos. Eu não creio que tenhamos falado mais do que vinte minutos durante essas dez horas. Este foi o ponto de partida de uma amizade bastante longa. Era, para mim, a primeira vez que uma amizade nascia de uma relação estritamente silenciosa. É possível que um outro elemento desta apreciação do silêncio tenha a ver com a obrigação de falar. Eu passei minha infância em um meio pequeno-burguês da França provincial, e a obrigação de falar, de conversar com os visitantes era, para mim, ao mesmo tempo algo muito estranho e muito entediante. Eu lembro-me de perguntar por que as pessoas sentiam a obrigação de falar. O silêncio pode ser uma forma de relação muito mais interessante." - Há, na cultura dos índios da América do Norte, uma apreciação do silêncio bem maior do que nas sociedades anglofônicas ou, suponho, francofônica. - "Sim. Eu penso que o silêncio é uma das coisas às quais, infelizmente, nossa sociedade renunciou. Não temos uma cultura do silêncio, assim como não temos uma cultura do suicídio. Os japoneses têm. Ensinava-se aos jovens romanos e aos jovens gregos a adoptarem diversos modos de silêncio, em função das pessoas com as quais eles se encontrassem. O silêncio, na época, configurava um modo bem particular de relação com os outros. O silêncio é, penso, algo que merece ser cultivado. Sou favorável que se desenvolva esse êthos do silêncio."

Michel Foucault, Silêncio, sexo e verdade - Uma entrevista com Michel Foucault

20070423

O povo julga bem as coisas, porque está na ignorância natural, que é o verdadeiro lugar do homem. A ciência tem duas extremidades que se tocam. A primeira é a pura ignorância natural, na qual se encontram todos os homens ao nascer. A outra extremidade é aquela a que chegam as grandes almas que, tendo percorrido tudo quanto os homens podem saber, acham que nada sabem e voltam a encontrar-se nessa mesma ignorância da qual tinham partido; mas é uma ignorância sábia que se conhece. Os do meio, que saíram dessa ignorância natural e não puderam chegar à outra, têm umas pinceladas dessa ciência suficiente, e armam-se em entendidos. Esses perturbam o mundo e julgam mal de tudo. O povo e os verdadeiramente sábios compõem a ordem do mundo; estes desprezam-na e são desprezados.

Blaise Pascal, Pensamentos

20070405

Os olhos também cheiram
O frio.
Todo o confuso amontoado do social move-se em torno desse referente esponjoso, dessa realidade ao mesmo tempo opaca e translúcida, desse nada: as massas. Bola de cristal das estatísticas, estas são atravessadas por correntes e fluídos à semelhança da matéria e dos elementos naturais. Pelo menos é assim que elas nos são representadas. Elas podem ser magnetizadas, o social rodeia-as como uma eletricidade estática, mas a maior parte do tempo comportam-se precisamente como "massa", o que quer dizer que absorvem toda a electricidade do social e do político, neutralizando-as sem retorno. Não são boas condutoras do político, nem do social, nem mesmo boas condutoras do sentido em geral. Tudo as atravessa, tudo as magnetiza, mas nelas se dilui sem deixar traço. E na realidade o apelo às massas sempre ficou sem resposta. Elas não irradiam, ao contrário, absorvem toda a irradiação das constelações periféricas do Estado, da História, da Cultura, do Sentido. Elas são a inércia, aforça da inércia, do neutro. (...) Nalgum ponto da representação imaginária, as massas flutuam entre a passividade e a espontaneidade selvagem, mas sempre com uma energia potencial, hoje referente mudo, amanhã protagonista da história, quando elas tomarão a palavra deixarão de ser a ,"maioria silenciosa" - ora justamente, as massas nada têm história a escrever, nem passado nem futuro, não têm energias virtuais para libertar, nem desejo a realizar: a sua força é actual , toda ela é o silêncio. Força de absorção e neutralização, desde já superior a todas as que se exercem sobre elas. Força de inércia específica, cuja eficácia é diferente da de todos os esquemas de produção, de irradiação e de expansão sobre os quais funciona o nosso imaginário, incluindo a vontade de destruí-los.

Jean Baudrillard, À sombra das maiorias silenciosas

20070401


Herbert Bayer, Abstraction
Com os músculos das costas posso me divertir.
Com um pepino não.
Houve um tempo em que se pensava que as asserções científicas eram, ou deveriam ser, objectivas e não valorativas; que as expressões de valor eram distinguíveis das expressões de facto, e que a ciência se deveria confinar a estas últimas. Renunciou-se a uma tal visão, com relutância, por parte de alguns, quando se reconheceu que as teorias incorporam valores, porque advogam uma forma de descrever o mundo em detrimento de outras, e que mesmo as observações de facto são feitas a partir de algum ponto de vista ou teoria sobre o mundo, já pressuposta.
Ainda que favorável à distinção facto-valor, Popper reconheceu que os enunciados científicos invocaram valores, acreditando todavia que a argumentação na ciência era objectiva e não valorativa. Popper defendeu que o modo primordial de argumentação na ciência é dedutivo. As teorias na ciência propõem leis da forma «todos os As são Bs», e a tarefa da investigação científica é encontrar ou provocar instâncias de A, e ver se elas falham em produzir ou correlacionar-se com instâncias de B. O teste de uma teoria era o da sua subsistência às tentativas de a falsificar. Uma boa teoria encoraja tais tentativas, propondo asserções, de preferência de âmbito amplo e inesperadas a asserções de âmbito mais limitado e esperadas. Se a ocorrência de instâncias de B falhar, sendo dadas instâncias de A, então a teoria é falsificada. Uma nova teoria que dê conta da não ocorrência de B, exprimindo-se ainda em termos dedutivos, substituiria a velha teoria. Os procedimentos usados na descoberta de teorias, o modo como uma teoria se relaciona com modelos fisicos ou matemáticos ou outras crenças, não eram considerados elementos essenciais à ciência.
Veio então Kuhn defender que mesmo a argumentação usada na ciência não é livre de valorações, ou certa. A ciência envolve mais do que um conjunto de generalizações independentes sobre o mundo, à espera de serem falsificadas por uma contra-instância singular. Envolve um sistema, ou «paradigma», não apenas de generalizações e conceitos, mas de crenças sobre a metodologia e critérios de avaliação da investigação: sobre o que são boas questões, o que sejam desenvolvimentos adequados de uma teoria, ou métodos de investigação aceitáveis. Uma teoria substitui outra, não porque funcione, com sucesso, como premissa maior num maior número de deduções, mas porque responde a algumas questões que a outra teoria não responde -- mesmo que possa não responder a algumas questões a que a outra responde. As mudanças de teoria ocorrem porque uma teoria satisfaz mais do que outra, porque as questões a que dá resposta são consideradas mais importantes. A investigação feita sob um paradigma não é feita para falsificar uma teoria, mas para preencher e desenvolver conhecimento para o qual o paradigma fornece um quadro de trabalho. O procedimento envolvido no desenvolvimento e substituição de um paradigma não é simplesmente dedutivo, e não existe, provavelmente, uma caracterização única adequada de como tal procedimento funciona. Isto não significa que ele seja irracional, ou não mereça ser estudado, mas apenas que não existe uma caracterização universal simples do que seja uma boa argumentação científica.
Esta visão da ciência, ou outra do mesmo tipo, é agora amplamente sustentada pelos filósofos. Sugeriu-se, entretanto, que também a filosofia é governada por paradigmas.

Janice Moulton, Revista do pensamento contemporâneo