20070331

Poetas são abutres
dos próprios desejos
mastigam com binóculos
os próprios medos.

Gabriela Marcondes, Sobremesa da eternidade
Quando morrem, os cavalos - respiram
Quando morrem, as ervas - secam
Quando morrem, os sóis - se apagam
Quando morrem, os homens - cantam.

Velimir Khlebnikov, 1913

20070330

Fillipo Tommasi Marinetti, Marcia Futurista

20070329

Os corvos pintados dois dias antes de sua morte não lhe abriram, mais que suas outras telas, a porta de certa glória póstuma, mas abrem à pintura pintada, ou melhor, à natureza não pintada, a porta oculta de um mais além possível, através da porta aberta por Van Gogh para um enigmático e pavoroso mais além. Não é frequente que um homem, com um balanço no ventre do fuzil que o matou, ponha numa tela corvos negros, e debaixo uma espécie de planície, possivelmente lívida, de qualquer modo vazia, em que a cor de borra de vinho da terra se enfrenta loucamente com o amarelo sujo do trigo. Mas nenhum outro pintor, fora Van Gogh, foi capaz de descobrir, para pintar seus corvos, esse negro de trufa, esse negro de comilona faustosa e ao mesmo tempo como de excremento das asas dos corvos surpreendidos pelos resplendores declinantes do crepúsculo. E de que se queixa a terra ali, sob as asas dos faustos corvos, faustos só, sem dúvida, para Van Gogh e, ademais, faustoso augúrio de um mal que já não lhe diz respeito? Pois até então ninguém como ele havia convertido a terra nesse trapo sujo empapado em sangue e retorcido até escorrer vinho. No quadro, há um céu muito baixo, achatado, violáceo como as margens do raio. A insólita franja tenebrosa do vazio se eleva em relâmpago. A poucos centímetros do alto e como proveniente debaixo da tela, Van Gogh soltou os corvos como se soltasse os micróbios negros de seu baço suicida, segundo o talho negro da linha onde o bater de sua soberba plumagem faz pesar sobre os preparativos da tormenta terrestre a ameaça de uma sufocação vinda do alto. E, no entanto, todo o quadro é soberbo. Quadro soberbo, sumptuoso e sereno. Digno acompanhamento para a morte daquele que, em vida, fez girar tantos sóis ébrios sobre tantas parvas rebeldias ao exílio e que, desesperado, com um balanço no ventre, não pôde deixar de inundar com sangue e vinho uma paisagem, empapando a terra com uma última emulsão, radiante e tenebrosa ao mesmo tempo, que sabe a vinho acre e a vinagre picado.

Antonin Artaud, Van Gogh: o suicidado da sociedade